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RODOLFO PITARELLO

Abr 30 — Ago 30, 2024

Ecos, ocos e contrafluxos

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É em contrafluxo permanente aos que parecem ser os caminhos arquetípicos da arte hoje que a produção artística de Rodolfo Borbel Pitarello – artista nascido em Santo André, na Grande São Paulo, em 1985 – chegou ao mundo, em especial, ao ambiente paulistano da arte. Ao contrário do que poderíamos pensar de um pintor contemporâneo muito ligado aos temas sociais e às representações do agora, a prática poética do artista entrelaça outros tempos e movimentos temáticos, algo que está na ordem do extemporâneo. Há motivações diversas para entender as particularidades de seu devir poético. Explico.


Em primeiro lugar, trata-se de um artista que, em seus anos de formação, batalhou para inserir-se no circuito da capital paulistana. Foram anos de deslocamento entre uma cidade-satélite e o epicentro da maior cidade latino-americana. Esse fluxo é essencialmente um movimento que se incorporou na formação ética e estética do artista, fazendo com que ele desenvolvesse uma profunda consciência de classe. Rodolfo formou-se nos anos de euforia econômica do Brasil, na primeira década do século 21. É, para ele, muito marcante perceber-se como artista nas condições e realidades que vivenciou, vindo de uma família cujas origens remontam ao Leste Europeu, advindas de um profundo senso de sobrevivência. Portanto, romper com a noção de utilidade profissional, junto ao compromisso de realizar uma faculdade a 150 minutos de distância de sua casa, demonstra seu primeiro caminho em contrafluxo. Se muitos dos seus colegas faziam o movimento de São Paulo para fora, ele cruzava o caminho inverso, do subúrbio para o centro.


Em segundo plano, Rodolfo foi naturalmente construindo um lugar próprio de um “artista-etc.” –termo cunhado pelo artista e teórico Ricardo Basbaum para designar o artista de múltiplos ofícios, cuja trajetória confunde as fronteiras dos mais diversos trabalhos. Não há mais a distinção romantizada de artista, ainda comum até a primeira metade do século 20, mas, sim, um sentido de urgência que envolve uma atuação multidisciplinar, tanto pela sobrevivência como pelos ecos de uma produção que integra diversas linguagens e procedimentos. Se o artista resolve passar um par de anos estudando a pintura com têmpera (em especial a têmpera de ovo), há também um interesse genuíno pelas atualizações da vanguarda surrealista – um dos movimentos contemporâneos de resistência na arte. Além disso, se, por um lado, há um mergulho no conhecimento alquímico ou místico da vida, há também uma dedicação ao pensamento marxista atual. Por isso, mais uma vez, percebemos a noção de contrafluxo.


A título de exemplo, se olharmos em voo rasante para as pinturas que o artista nos apresenta, conseguiremos encontrar, em seu vocabulário, uma aproximação possível com a visualidade de uma produção atual que não advém dos grandes centros, mas de perspectivas críticas à ordem do modernismo hegemônico. Grosso modo, ao ver com mais atenção a sua produção, ecoa um repertório que conflui para a produção do sul da Europa ou do Leste Europeu: de partida, vieram como uma referência visual as imagens produzidas pela artista cipriota Haris Epaminonda.


Ao mesmo tempo, distante de seus pares, Rodolfo aprendeu a complexa e delicada técnica da têmpera, no ambiente da Igreja Ortodoxa em São Paulo. No entanto, passou a aplicá-la não no desenho dos ícones, mas na expressão de uma paisagem gráfica, arquitetônica e onírica própria. Trata-se, desse modo, de um elemento de distinção em seu trabalho. Não de forma intencional, até a escolha técnica vai nessa mesma trajetória de contrafluxo, algo que confabula e sublinha a artesania de sua produção. Nesse ponto, cria-se uma aproximação eventual e inevitável, porém distanciada em termos espaço-temporais, com a produção da tríade da têmpera moderna brasileira: Guignard, Volpi e Lore Koch.


Sobre uma partitura espacial e pictórica

Das leituras sensíveis de sua produção, dois caminhos conceituais me parecem conjugados nesta seleção de pinturas trazidas agora ao público, a partir dos quais são propostos dois núcleos de palavras que os distinguem: o primeiro, impregnação, sentido e símbolo; o segundo, presença, movimento e transformação. Tais percepções sequenciais são compreensíveis pela própria natureza dos trabalhos. De um jeito, a pigmentação impregna as superfícies porosas de telas e madeiras conduzidas pelos gestos gráficos do artista; de outro, as composições pictóricas sugerem os movimentos dos planos entrelaçados de objetos. Neste último caminho, acontece uma expressão corporal que tenta escapar da planaridade da parede: a contemplação torna-se dinâmica. É claro que ambos os caminhos poético-conceituais se interpolam, tanto nas estruturas tridimensionais como nas superfícies bidimensionais. Esses planos pictóricos, por sua vez, ecoam, formulam estruturas e atuam em interdependência de umas com as outras. Nessa interpolação, gosto de sugerir a ideia de um “eco pictórico” que reverbera temas, símbolos e formas, aguçando nossa visão e promovendo ciclos de intensidade.


Para além, conhecer a obra do artista é realizar um mergulho íntimo em seu processo cotidiano de criação, algo que se propaga nos próprios temas refletidos em suas superfícies pictóricas. Insisto, portanto, na ideia de uma espécie de “eco pictórico”, algo que recomeça de tela em tela, de cor em cor, de traço em traço, de sinuosidade em sinuosidade. Sabemos que o eco e a reverberação são conceitos caros ao som e à música, e usados de forma abundante nas várias formas de expressão da psicodelia. Poeticamente, Rodolfo parece transpor para a visualidade o que um efeito de eco e reverb (um tipo de pedal), de uma guitarra ou de um piano, nos traz em uma canção psicodélica.


É como se essa propagação sonora ganhasse cor e forma. De bate-pronto, me vieram ao pensamento quatro efeitos sonoros já canônicos da música popular: a força hipnótica das guitarras gravadas em “Tomorrow Never Knows”, dos Beatles, em 1966; os efeitos percussivos do brasileiro Pedro Santos, em 1968, no seu disco “Krishnanda”; os metais e as guitarras orquestradas na música do paulista Hareton Salvanini; a bateria hipnótica ecoando das gravações do disco “Closer”, de Joy Division, em 1980; entre tantas outras referências. Será que é possível, então, transpor a linguagem sonora da psicodelia para o apreço do olho? Talvez sim. A obra de Rodolfo Borbel Pitarello nos sugere essa sinestesia por meio do que eu quis chamar de “partitura espacial e pictórica”.


De modo geral, na prática poética do artista não há mistério no fazer, mas há mistério no resultado. O que há, verdadeiramente, é uma operação artística que não evoca representação ou discurso. Não nos cabe uma mensagem, um princípio ético, um tema cotidiano ou uma construção representativa em suas pinturas e objetos. Há um universo de imagens, símbolos e estruturas por terminar que constroem essa partitura visual. Aliás, é nesse fazer pictórico, entendido como um ritual cotidiano e realizado de forma obsequiosa, que o artista encontra uma razão para o seu fazer artístico. Não falo aqui do senso comum mais imediatista que nos faz associar o ritual ao sentido místico e religioso, ao caminho para a transcendência ou para o prazer da celebração. O rito é posto às claras, perfazendo a ordem dos dias, na construção cuidadosa de uma rotina.


No entanto, não há nenhum desprezo pelo místico ou pelo oculto. Esse lugar é, inclusive, sublinhado e reiterado tanto em discurso como nas formas do trabalho, ao mesmo tempo em que sublinha também uma possível razão construtiva. Isso parece nos dar uma medida da temperatura em seus trabalhos, um equilíbrio fugaz entre o quente e o frio: há, sim, um apreço pelo natural, por um equilíbrio momentâneo, talvez uma terceira margem das coisas. Por conseguinte, é essa temperatura amena que nos conecta mais uma vez à tradição moderna da têmpera brasileira. 


Percebe-se em sua produção, inclusive, a evocação de um certo romantismo que lhe permite criar de maneira mais livre e aberta, atento ao devaneio já tão extirpado da aridez do cotidiano. Da mesma forma, sua maneira de abordar a arte e sua pulsão criativa geram possibilidades de aproximação com o que seria a verve surrealista – hoje já muito pautada pelos movimentos de uma nova psicodelia entrelaçada à cultura popular em geral e a outras formas de operar o bem-estar. Se o cotidiano do artista, uma intensa atividade de trabalho no circuito das artes, o faz ter que obedecer aos ordenamentos sociais e hierárquicos da atividade remunerada, é, porém, na relação íntima da produção artística que Rodolfo encontra a ideia de insubmissão. Tal encontro resvala de maneira muito clara nas formas inacabadas, nas repetições, nos ritmos e nas cores de seus trabalhos, até mesmo em certos ocos que comparecem de vez em quando. São pequenos vazios aprisionados, ilhados pelas mais diversas manchas de cor.


Dentre as referências que, em certo sentido, apareceram naturalmente ao longo desta caminhada curatorial, estão o pensamento e a obra do artista argentino Victor Grippo (1932–2002). Mais do que na informação dos processos de trabalho, ou mesmo no reconhecimento de uma aproximação formal entre resultados poéticos, o que se assemelha entre ambos e torna-se uma espinha dorsal comum é a consciência político-estética do que é “trabalho”, ou, melhor, do que é o labor do artista. Distanciados no tempo, de lado a lado, há em ambos uma origem racional no entendimento de uma consciência de classe e na percepção do mundo pelas lentes do materialismo histórico, como também um entendimento romântico e ético do ofício de artista.


Segundo penso, ambos são artistas que clamam pela coincidência entre a arte e o trabalho, o conhecimento e a própria ação prática. A coisa mental flui naturalmente para o material, em um caminho de ida e volta: justamente da habilidade possível da mão e da memória para o campo pictórico do quadro, para a confecção do chassi e da moldura, e também para a concepção das estruturas e aparatos de exposição. Mesmo operando de maneira subconsciente, Rodolfo Borbel Pitarello reafirma constantemente que a arte e o trabalho ritualizam juntos. E tal condição é acentuada quando olhamos para os horizontes expositivos e encontramos os ecos, os ocos e os contrafluxos de sua obra. Diego Matos, maio de 2024.

Rodolfo Borbel Pitarello  é formado em artes visuais, design de produto e pós-graduado em história da arte. Já participou de mostras como o 11o Salão Nacional de Artes Visuais de Guarulhos e o 18o Salão de Artes Plásticas da Praia Grande. Em 2018, apresentou sua primeira individual na Oficina Cultural Oswald de Andrade Durante a Hora 00:00, com curadoria de Melina Martinho. E em 2020, além da exposição coletiva Ministério da Solidão, com curadoria de Julia Lima, apresentou a mostra Anotações na Massapê Projetos, com curadoria de Renan Teles. No ano seguinte, 2021,  foi finalista do Premio PIPA.

Obras

Vistas da exposição

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